Quando o assunto é Cavaleiro da Lua, a primeira característica que vem à mente é o famoso transtorno de múltipla personalidade do personagem. Essa condição foi fundamental para a criação da série do Disney+, que aproveita a natureza de “narrador não confiável” de seu protagonista para criar os mais variados tipos de conflitos e mistérios.
Ainda que com o filtro da famosa e segura “fórmula Marvel”, a produção constantemente coloca em cheque o quão real é tudo aquilo. Steven Grant (Oscar Isaac) tem outra personalidade? Ele é um super-herói? Deuses egípcios existem?, etc.
Em seu penúltimo episódio, a produção oferece respostas em um emocionante e doloroso mergulho no passado.
[A partir daqui, spoilers do quinto episódio de Cavaleiro da Lua]
Continuação direta do quarto episódio, o quinto começa com Marc tentando entender como foi parar em um sanatório. São duas opções: ou ele está realmente em um hospital psiquiátrico para tratar seus transtornos ou, na verdade, morreu e está no submundo egípcio aguardando o julgamento de sua alma.
A dualidade é uma marca registrada de Cavaleiro da Lua, que sobrepõe conceitos opostos como bem e mal, sanidade e loucura, gentileza e brutalidade ao longo da história. Só que agora, pela primeira vez, os extremos começam a se juntar em um meio-termo em que um explica o outro.
O enredo revela que, na prática, tudo o que foi mostrado até o quarto episódio foi real e Marc realmente foi baleado por Arthur Harrow (Ethan Hawke) no Egito. Com isso ele, Steven e a outra personalidade foram enviados para uma das várias “vidas após a morte” existentes no MCU – uma saída esperta para que esse universo nunca precise dar uma resposta concreta e definitiva para questões que variam de acordo com a fé de cada um.
Como são ligados à cultura egípcia por serem avatar de um dos deuses dessa cultura, quem os guia e recepciona é Tuéris, deusa-hipopótamo das mulheres e das crianças. Carismática e levemente atrapalhada, a deusa com voz original de Antonia Salib se torna um alívio cômico importante para trazer leveza a um dos episódios mais dramáticos da produção.
Isso porque, no pós-vida egípcio, Steven e Marc precisam passar pelo julgamento da Balança da Justiça, em que são pesados os corações dos mortos contra a Pena da Verdade. Caso a balança se equilibre e prove que a pessoa em questão é boa, ela tem passe livre para o paraíso chamado Campo de Juncos. Se não equilibrar, ela fica pelo próprio submundo, preso eternamente em agonia.
Esse conceito foi explicado por Steven no primeiro episódio. Curiosamente, ao contar sobre o processo para uma garotinha no museu, ela pergunta a ele se “foi ruim” para ele ser rejeitado no Campo de Juncos. Uma pergunta aparentemente sem sentido, que ganha todo um novo significado ao fim do quinto capítulo.
A dupla passa pelo julgamento, mas por não conhecerem toda a verdade sobre si mesmos, a balança se recusa a equilibrar – exatamente como aconteceu no primeiro episódio, em que Arthur Harrow não conseguiu julgar se o protagonista era uma boa pessoa. E assim, eles entram em uma jornada para examinar o passado e descobrir o que aconteceu, para que finalmente possam ser julgados.
Nesse ponto, explica-se também por que eles estão na ala psiquiátrica de um hospital. Como o submundo egípcio Duat é impossível de ser processado por mentes humanas comuns, cada uma vislumbra um cenário diferente. Por não confiarem na própria sanidade, Marc e Steven acabam presos em um sanatório, que serve como um grande portal para memórias reprimidas.
Após muita relutância, Marc aceita embarcar com Steven nessa jornada e tem todo o seu passado revisto e exposto. De forma não linear, vemos a história de Marc Spector, um garoto que teve uma vida de maus tratos e abusos por parte da mãe após ser culpado pela morte do irmão, Randall.
Na infância, Marc levou o irmão para brincar em uma caverna perto de casa durante uma forte chuva. Os garotos acabam presos no local e Randall não resistiu. Com a dor do luto, a mãe dos garotos passou a culpar o filho sobrevivente pela perda, algo que não fez a menor questão de esconder ao longo de anos.
A presença abusiva da mãe criou um trauma tão grande, que o garoto desenvolveu o transtorno de identidade dissociativa. Ao menor sinal de problemas, ele era substituído por uma outra personalidade, o Steven Grant – criado com base no herói de “Destruidor de Tumbas”, um filme que Marc assistia na infância.
Desde então, ele seguiu a vida fragmentado entre duas personalidades com vidas quase independentes. Infelizmente isso não foi o bastante para resolver as coisas com a mãe, o que levou Marc a sair de casa e buscar uma carreira no exército. Mas suas transições para Steven fizeram com que ele fosse dispensado das forças armadas, deixando como única opção a carreira como mercenário.
A partir daí ele chega à parte da história revelada no capítulo anterior. Parte de um bando de mercenários, Marc atacou a expedição em que o pai de Layla (May Calamawy) trabalhava e acabou quase morto pelo antigo chefe, o Bushman. Sua salvação vem das mãos de Khonshu, deus da Lua que o acolhe como avatar.
A última parada (cronologicamente falando) dessa jornada é justamente o evento que borrou a linha entre Marc e Steven. Ao que tudo indica, a dupla existia em uma certa harmonia, com cada um tocando sua vida separadamente. O primeiro se casou e viveu aventuras com Layla, enquanto o segundo se especializou em cultura egípcia e começou a trabalhar no museu. Isso mudou quando a mãe deles morreu, o que fez com que Marc revivesse vários dos seus traumas e perdesse o “controle” dessa divisão.
Memórias dolorosas se tornam revelações chocantes para Steven, que até então achava que a mãe estava viva – uma ausência que a série havia indicado sutilmente lá no primeiro capítulo, quando ele liga para ela, mas cai na caixa postal. Toda essa dor e angústia mostram, novamente, como a Marvel acertou na escalação de Oscar Isaac para o papel. Se o público se conecta e tem empatia pela dor do protagonista, muito se deve à entrega do ator.
Após uma longa e dolorosa terapia, Marc finalmente se perdoa e a dupla caminha para ter seu julgamento concluído. Porém, o tempo estava acabando e o barco começa a ser atacado por antigas vítimas do mercenário, pessoas que ele matou a mando de Khonshu por serem malignas. O resultado do combate é trágico, com Steven lançado para fora do barco e congelado nas areias do submundo egípcio.
Sem o coração de sua outra identidade na balança, Marc é julgado e mandado para o Campo de Juncos. Por mais que a chegada ao paraíso pareça uma derrota, especialmente pela perda de Steven, ela também tem o peso de mostrar que ele é sim digno de salvação e paz. Uma redenção que lembra muito a felicidade de Thor ao descobrir que ainda é digno em Vingadores: Ultimato (2019).
Porém, essa jornada ainda não chegou ao fim, e agora Marc precisa arranjar um jeito de deixar o paraíso para voltar à Terra, salvar aqueles que ama e o próprio universo. Isso porque os julgamentos precipitados de Arthur Harrow em nome de Ammit estão causando um desbalanceamento entre os planos terrestres e superiores.
E é assim que a série prepara seu grand finale com um longo mergulho no passado de seu protagonista. Resta saber como o sexto e último capítulo vai amarrar essa história e, provavelmente, colocar o Cavaleiro da Lua no radar dos outros heróis desse universo.
O capítulo final da série chega ao Disney+ no da 4 de maio.