Psicodelia e celofane: conheça o bizarro primeiro live-action do Doutor Estranho

Quase quatro décadas antes do mago supremo da Marvel ser apresentado no MCU com Benedict Cumberbatch, um Stephen ainda mais estranho chegava à TV dos EUA em sua primeira aparição em live-action. E nem se trata de loucura de multiverso, porque isso aconteceu aqui mesmo nesta Terra, em uma realidade delirante chamada anos 1970, com o telefilme Dr. Strange e o Doutor Estranho de Peter Hooten.

A produção, que buscava levar às telas a magia psicodélica dos quadrinhos de Steve Ditko e Stan Lee, foi pensada como um piloto (episódio de teste exibido às emissoras para aprovação) para a rede norte-americana CBS. Na época, a mesma emissora exibia o seriado do Incrível Hulk (aquele mesmo, com Bill Bixby e Lou Ferrigno). No caso de Strange, a intenção era seguir com um série completa, o que obviamente não aconteceu.

Mesmo fracassando na missão de garantir uma série ao mago, Dr. Strange virou objeto de interesse dos fãs mais fervorosos do personagem, ganhando até relançamento em Blu-ray este ano, com direito a remasterização em HD. Antes de assistir a Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, que estreia esta semana nos cinemas brasileiros, que tal conhecer a variante menos conhecida, mas também pioneira, de Strange no audiovisual?

Doutor Strange… psiquiatra?

Na trama, Stephen (Hooten) não é neurocirurgião, tampouco sofre um acidente de carro, como nas HQs e filmes modernos. Consequentemente, o mago não vive o drama de buscar uma cura para as lesões nas mãos, que o impedem de trabalhar e são o estopim para a jornada do egocêntrico médico em busca dos segredos da magia milenar. Aqui, Strange, por algum motivo, nasce com poderes, só ainda não sabe.

Parece o Seu Madruga, mas é só Strange…

O personagem leva uma rotina pacata trabalhando em um hospital. A trama, aliás, toma boa parte da duração do filme. Alguém desavisado poderia até achar que se trata de um seriado médico, ou uma espécie de Grey’s Anatomy com magia. Mas as coisas ficam sinistras com a aparição de uma vilã sedenta por destruição, com direito a muito fundo verde, jogos de luz e outros efeitos práticos – além de uma velha conhecida para fãs de sitcoms modernas.

Uma deusa, uma feiticeira, ela é demais…

Se o Strange de 2022 precisa lidar com Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen), o de 1978 vive maus bocados na mão da feiticeira Morgan Le Fay. No filme, a personagem é vivida por Jessica Walters, a Lucille Bluth de Arrested Development (2003-2019), anos antes da fama.

Enviada por um espírito maligno, Le Fay chega ao nosso mundo para assassinar ou corromper o mago supremo, Lindmer (personagem um pouco aleatório, mas com alguma semelhança com a Anciã do filme de 2016) e seu aprendiz (um Strange ainda não treinado) ao lado sombrio. O jogo de gato e rato segue até o mago finalmente encontrar Stephen e ajudar o psiquiatra a assumir seu destino, ainda que a tal “herança de magia” nunca seja objetivamente explicada, com a ajuda de um outro conhecido…

Strange e Morgan Le Fey. 40 anos antes de Wanda

Um velho companheiro fiel

Mesmo na primeira aventura live-action, Strange não poderia perder a companhia do leal amigo Wong. Aqui, o mago também é retratado como ajudante do mago supremo Lindmer, e posteriormente do próprio Strange.

O personagem até tem uma abordagem relativamente respeitosa, vivido por Clyde Kusatsu, ainda mais se comparado a outras representações de personagens asiáticos nos filmes da cultura pop de décadas passadas. Wong vira figura importante na batalha contra a feiticeira Le Fey, e se prova um grande aliado de Strange, com uma postura menos subserviente do que nos quadrinhos, ainda que tenha um inexplicável sotaque britânico.

Sinal dos tempos (e magia interrompida)

No final do filme, Strange assume o manto de mago supremo, aparentemente derrotando Morgan Le Fey e jurando dedicar a vida a proteger a humanidade. O personagem, claro, ganha um uniforme estiloso que parece bem imponente até os dias atuais (sem brincadeira).

É interessante notar também como, mesmo em um projeto aparentemente despretensioso como uma adaptação de quadrinhos claramente voltada ao público infanto-juvenil, nota-se um comentário social importante no desfecho do longa.

A feiticeira Le Fey aparece novamente, sob disfarce, agora como uma líder de culto. 1978, vale lembrar, foi o mesmo ano em que o cultista Jim Jones provocou o suicídio em massa de mais de 900 seguidores, além do surgimento de outros líderes populistas e assassinos em série.

Apesar das interessantes sequências de ação e efeitos visuais, Dr. Strange, como já dito, acabou recusada pela CBS, mesmo com diversos ganchos em aberto. Críticas da época destacam justamente a disparidade do ritmo entre a trama médica e os trechos de magia.

Mesmo em home video, o filme não teve o mesmo sucesso que série do Hulk, sendo relegado a uma curiosidade bizarra no caminho de mais de 50 anos até o personagem ganhar uma versão realmente fiel aos quadrinhos, com todas as maravilhas visuais que a computação gráfica moderna pode proporcionar.

De qualquer forma, o filme é um interessante retrato de uma época em que as produções de heróis, apesar de existirem desde os anos 1940, ainda eram aventuras distantes, certamente muito longe da impressionante indústria que hoje domina as bilheterias mundiais.

Admita. O uniforme é bastante estiloso…

Basta dizer que a produção é vista com carinho até pelo próprio Stan Lee, que definiu o longa como uma de suas melhores experiências em adaptações dos quadrinhos para outras mídias, junto com o Hulk da CBS.

Em entrevista à Comics Feature em 1985, a lenda dos quadrinhos disse:

“Eu tive mais envolvimento criativo [em Dr. Strange]. Fiquei muito amigo do roteirista e produtor Phil DeGuere. Fiquei bastante satisfeito com Dr. Strange e com O Incrível Hulk. Inclusive acho que Strange deveria ter se saído muito melhor em audiência.”

Se você ficou curioso para assistir ao filme, pode arriscar importar uma cópia do Blu-ray recém-lançado pela Shout Factory, ou torcer para que alguma distribuidora lance o produto no Brasil. Vai que o Strange setentista aparece em algum novo multiverso da Marvel na telona…

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