Séries de TV (felizmente) não são obras estáticas. O que torna o meio especial é sua capacidade de transformação ao longo dos anos, seja para melhor ou para pior. É isso que torna a televisão perfeita para uma adaptação de The Witcher, visto que os livros de Andrzej Sapkowski também trazem uma história que evolui e muda de tom e forma com o tempo.
Quando o autor polonês apresentou Geralt de Rivia ao mundo no final dos anos 80, tinha apenas a noção de que o bruxo seria um “resolvedor de problemas”, um profissional especializado em caçar monstros em um universo infestado por eles. Sem planos meticulosos, Sapkowski foi descobrindo esse universo junto com os leitores através de contos frequentes, e depois com romances anuais.
Foi só a partir de Tempo de Desprezo (1996), o quarto livro da franquia, que a trama demonstrou personalidade, confiança em sua voz e um imponente conflito principal. E agora a série da Netflix alcança este mesmo ponto. Depois de estabelecer nas telas quem são Geralt (Henry Cavill), Yennefer (Anya Chalotra) e Ciri (Freya Allan), a terceira temporada começa a avançar rumo à transformações grandiosas no Continente.
A Calmaria antes da Tempestade
Por mais que tenha despertado certo incômodo dos fãs, a showrunner Lauren Hissrich acertou ao fazer modificações nas temporadas anteriores ao invés de optar por uma adaptação literal. Olhando a obra de Sapkowski como um todo, a produtora-principal adiantou algo que o autor só descobriria com o tempo: que Yennefer e Ciri são tão protagonistas quanto Geralt.
Por conta disso, as duas temporadas anteriores dividiram o tempo de tela do bruxo entre a feiticeira e a jovem. Na época da estreia, a decisão causou certo rebuliço pela estrutura não-linear, mas os frutos são colhidos nesta terceira temporada. O espectador que viu os anos anteriores já sabe quem são essas pessoas, e entende que a maior força por trás dos três é o desejo de ficarem unidos como uma inusitada família cuja conexão vai além do sangue.
Na terceira temporada, o trio consegue viver essa fantasia por certo tempo. Refugiados, os três criam um semblante de normalidade e tentam funcionar como família, apesar dos atritos entre Geralt e Yennefer, ou então dos dois com Ciri. É aqui que a série vai dividir ainda mais o público entre quem acredita que The Witcher é o épico de fantasia dos jogos da CD Projket RED, ou então o novelão cheio de drama, sangue e humor das páginas de Sapkowski.
O seriado, por sua vez, não tem medo de abraçar a breguice. A evolução de Geralt acontece em tentar ser melhor como companheiro romântico e também como pai. Assim como nos livros, a adaptação entende que o conflito do bruxo não é com as criaturas, mas sim interno: a briga entre os efeitos apáticos de sua mutação e a dureza da realidade contra o seu enorme coração sensível.
Ao focar nesse lado mais melodramático, The Witcher brilha com vida e humor, o que é uma decisão certeira mas ousada, podendo ir de encontro com as expectativas do público. A série não cede e tenta equilibrar a ação com as intrigas. Uma cena traz uma intensa batalha de espadas, mas outra pode mostrar Jaskier (Joey Batey) percebendo que tem um “crush” (como a própria série diz) em um príncipe da Redania. A graça é justamente a mistura dessas sensações conflitantes, como folhear o melhor-pior livro de fantasia medieval erótica numa banca.
Mas rapidamente a ideia de tranquilidade se mostra uma ilusão ao ritmo que o sumiço de Ciri só a torna mais cobiçada por todo o Continente. Fica evidente que a ênfase da série ao lado humano, emotivo e romântico de seus personagens tem um propósito: entender o desespero do trio em se reencontrar quando inevitavelmente forem separados pelo destino.
Batismo de Fogo
Por algum motivo desconhecido, os episódios da temporada inédita são divididos em dois volumes, apesar de não terem sido escritos com isso em mente. De qualquer forma, o Volume 1 serve como preparação para uma das maiores viradas da saga.
Ao mesmo tempo que examina os desejos e paixões dos personagens, um intenso conflito político vai se formando de fundo com a ameaça de guerra entre Nilfgaard e os reinos do Norte. A temporada não pesa tanto nesse aspecto – não é um Game of Thrones da vida, evidentemente -, mas dá o suficiente para o espectador entender que algo grande está a caminho, e que Ciri e seu Sangue Antigo estão no centro dessa disputa.
Nesse lado, quem brilha é Dijkstra. O espião da Redania é um dos personagens mais memoráveis dos livros, e lentamente vai conquistando seu espaço na televisão como um impiedoso manipulador. Ajuda o fato de ser interpretado pelo excelente Graham McTavish (Preacher, CastleVania, Outlander), que é conhecido por sua aparência durona e voz grossa, mas que aqui surpreende também por parecer menor e mais acanhado quando precisa fingir.
Alternar entre intrigas amorosas e políticas, ou entre a caça de monstros e discussões entre magos, não é exatamente novidade, mas parece que enfim o seriado acertou a mão no equilíbrio. Tudo na temporada caminha com o propósito de preparar para um grande evento – e isso torna um pouco anticlimática a separação ilógica dos episódios.
O quinto capítulo, que traz Geralt e Yennefer discutindo todos os acontecimentos de um movimentado baile na escola de magia Aretuza, é facilmente um dos melhores da série, com ótimo domínio de suspense e de como explorar as várias camadas de uma única situação. Sua conclusão, porém, é muito abrupta ao episódio ser encerrado exatamente antes de um dos eventos mais transformadores da saga toda.
A Netflix não discutiu os motivos da divisão em volumes, ainda que tenha feito o mesmo com La Casa de Papel e Stranger Things, mas é possível especular como uma forma artificial de criar antecipação pela série ou talvez até de estender muito do interesse que com certeza será perdido após Henry Cavill deixar o papel principal. Seja qual for a desculpa, soa como um truque barato, especialmente em uma temporada boa o bastante ao ponto de não precisar disso.
O terceiro ano de The Witcher pode não ter o tom que muita gente esperava de uma adaptação, mas é perfeitamente alinhado com a obra original de Andrzej Sapkowski em toda sua melodramaticidade, breguice e momentos empolgantes.
Há enorme confiança nos personagens e no universo, mas a separação em volumes pode acabar apaziguando o impacto de um capítulo importante como um todo. Com apenas três episódios restantes na terceira temporada, e mais um derivado em desenvolvimento, o maior empecilho para o seriado parece ser mesmo a sede da Netflix em prolongá-lo além do necessário.
O Volume 1 da 3ª temporada de The Witcher chega em 29 de junho, enquanto o Volume 2 estreia em 27 de julho. As temporadas anteriores estão no catálogo do streaming.