É possível duas interpretações da mesma premissa coexistirem na mesma franquia? Essa parece ser uma realidade para A Morte do Demônio (ou Evil Dead). Ao longo da última década nos cinemas, na TV e nos games, a saga conseguiu satisfazer tanto o fã nostálgico quanto os novatos ou ansiosos por uma modernização.
O lado saudosista sempre pareceu ganhar mais atenção, com três excelentes temporadas da série Ash vs. Evil Dead e o jogo Evil Dead: The Game, bastante elogiosos à trilogia original de Sam Raimi e Bruce Campbell. Para quem buscava uma reinterpretação mais violenta, o remake A Morte do Demônio (2013) segue como um queridinho cult, mas poucas movimentações haviam acontecido – até agora.
A Morte do Demônio: A Ascensão, que chega agora aos cinemas, retoma a linha do remake depois de uma década: reimaginar a essência da saga por uma ótica mais sádica, sombria e grotesca que a trilogia clássica. O resultado vem com ressalvas, claro, mas definitivamente convence pela brutalidade.
Constantes e Variáveis
A trama não traz conexões diretas com outras produções da série, mas utiliza da mesma premissa de acompanhar uma noite infernal após entidades demoníacas serem libertadas quando alguma alma desavisada lê o Necronomicon, o Livro dos Mortos. O caos, porém, deixa a cabana no meio do mato para trás e se desenrola em um conjunto habitacional na periferia de Los Angeles.
O longa segue Beth (Lily Sullivan), uma roadie que busca a ajuda da irmã distante Ellie (Alyssa Sutherland) ao descobrir estar grávida. Hospedada em sua casa ao lado dos dois filhos dela, a jovem vê sua relação fraternal se tornar ainda mais amarga quando Ellie é possuída por algo perverso e começa a ameaçar a vida de todos os envolvidos.
Em termos de estrutura, A Ascensão joga seguro. Todos os elementos que se espera de um Evil Dead estão presentes: o livro, os demônios de boca-suja, os heróis incomuns, e a luta pela sobrevivência até o amanhecer. O filme reconhece que não vai reinventar a roda, e há algo curiosamente satisfatório nisso.
Há acenos aos antecessores e outros clássicos do horror, mas não é uma obra de nostalgia que tenta reencenar o que já foi consagrado ou forçar a ideia de um universo maior. É um conto de horror isolado, mas orgulhosamente parte de algo maior, que usa as mesmas notas clássicas para criar uma melodia nova. Os horrores que Ash Williams vivenciou no meio do nada podem muito bem acometer qualquer pessoa, em qualquer lugar. Basta o Necronomicon cair em mãos erradas.
Pode não ser a abordagem mais empolgante, especialmente quando os originais de A Morte de Demônio influenciaram todo um subgênero do horror. Mas ainda assim é uma forma interessante de tocar em uma franquia tão amada sem se render à nostalgia barata. Não é nada de novo, mas também não é apelativo ao ponto de novamente girar em torno de Ash e aquela fatídica noite oitentista.
Mortos ao Amanhecer
Se falta de originalidade, o filme compensa pela violência. Esse não é A Morte do Demônio de Sam Raimi, com humor pastelão e o enorme carisma de Bruce Campbell, mas sim uma versão que amplifica os tons sádicos e chocantes da saga. Assim como no longa de 2013, A Ascensão deixa o espectador apreensivo por não saber quais os limites de suas agressões. E quando há uma gráfica cena de escalpelamento logo nos primeiros minutos, é mais do que justificável ficar um pouco acuado.
Assim como nos originais, a noite maldita avança em uma verdadeira sucessão de desgraças, ao ritmo que a maldição toma pessoa por pessoa como uma infecção. Com a família isolada no conjunto habitacional, todo objeto cotidiano pode ter uso deturpado para fins sanguinolentos. Uma personagem possuída devora uma taça de vinho como se fosse cereal, mastigando e engolindo os cacos de vidro, enquanto outra cena traz um ataque brutal… com um ralador de queijo. Tudo isso só aumenta a imprevisibilidade das criaturas, que podem transformar qualquer coisa do apartamento em arma.
O filme é dirigido e escrito por Lee Cronin, cineasta escolhido por Raimi e Campbell para tocar o projeto após chamar a atenção com O Bosque Maldito (2019). Ainda que demonstre certa pressão em ser elogioso aos antecessores, o cineasta parece se divertir com o desafio de manter tudo visualmente interessante dentro do confinamento da locação única, e também de abraçar o uso de efeitos práticos sempre que possível.
Seu estilo pode não ser chamativo como o de Sam Raimi, mas ainda convence ao brincar com reflexos nas janelas e em lâminas de faca, ameaças fora de foco, e belas cenas que fragmentam a tela com uso de split diopters. Em um dos melhores momentos, usados extensivamente na divulgação, o público acompanha Ellie possuída, cometendo um massacre no corredor, apenas pelo olho mágico da porta, com a típica distorção de uma lente olho-de-peixe, em uma barreira que parece frágil demais para conter toda sua perversão.
Cronin acerta a mão ao buscar estabelecer sua própria identidade visual para Evil Dead, que flerta muito com a estética de movimentos europeus como a Nova Extremidade Francesa, pelo seu uso contido de locações e apego por despertar aflição no espectador com sua violência e avalanche de sangue (literal, até).
Seu maior problema é não saber como manter a tensão constante entre suas doses esporádicas de desgraças. O cineasta frequentemente deixa a bola cair, com trechos que não são silenciosos o bastante para reiniciar o suspense, e nem intensos o suficiente para tirar o fôlego. Para muitos, isso pode ser o suficiente para dar a noção de algo que não engata, mas sim que pega nos trancos e barrancos.
Mesmo com problemas de ritmo e originalidade, A Morte do Demônio: A Ascensão é um ótimo capítulo para uma franquia na ativa desde os anos 1980. O longa utiliza da mesma premissa da trilogia de Sam Raimi e pega a estética estabelecida por Fede Alvarez, e expande esse rol com sua própria voz e estilo. Ainda que possa soar um pouco repetitivo para os fãs de longa data, ainda merece atenção por sua experiência criativa, contida e muito sanguinária, feita sob medida para divertir e deixar aflito em medidas iguais. De certa forma, isso só mostra um ótimo entendimento da essência de Evil Dead.