Existem muitas obras que sofrem para sair do papel e um grande exemplo é Nimona. A animação foi anunciada em 2015, com produção do estúdio Blue Sky, responsável por A Era do Gelo, que fechou as portas em 2021. Ao longo dos anos, a história até ganhou uma data de estreia, mas foi adiada e, posteriormente, engavetada pela Disney.
Porém, ao ser salva pela Annapurna Pictures, a produção finalmente chega à Netflix – e, apesar de alterar grandes aspectos da HQ em que é baseada, triunfa ao entregar um produto cheio de carisma.
No filme, Nimona é uma garota enérgica, com personalidade vilanesca, que decide se tornar ajudante do párea Ballister Boldheart. Este, por sua vez, é procurado por um crime que não cometeu e aceita a ajuda da menina para limpar seu nome. O que ele não esperava é que Nimona fosse uma metamorfa, capaz de se transformar nos mais diversos seres.
À medida em que o enredo avança, o espectador vê a construção de amizade entre estes dois “mocinhos maus”. Porém, tal laço é ameaçado por opiniões cruéis e segredos profundos.

Como mencionado na introdução, o que se percebe logo de cara é que o filme de Nimona se distancia bastante dos quadrinhos originais, escritos por ND Stevenson. O reino medieval ganha um contexto muito mais tecnológico, e a origem de personagens importantes, além das relações uns com os outros, é drasticamente alterada. Não é difícil perceber que o longa precisava de uma trama menos conspiratória e mais “amigável” do que a da HQ para dar certo. O texto original, por exemplo, se estende em discussões políticas e no surgimento de uma epidemia plantada, que não se encaixariam na dinâmica proposta para esse projeto.
Essas grandes mudanças transformam Nimona em uma nova história, mas a produção da Annapurna surpreende o fã ao explorar brechas dos quadrinhos de maneira assertiva. Uma forte característica da obra original é que vários pontos da trama são inseridos à nível de sugestão, ou apenas não são explicados, deixando o trabalho de imaginar respostas para o leitor. O filme, pelo contrário, pega algumas dessas situações e deixa tudo mais claro, o que impede que o espectador acumule questionamentos e seja tirado da imersão.
Outro aspecto que se destaca em Nimona são seus personagens, que esbanjam carisma do início ao fim, mesmo que alguns tenham recebido uma repaginada completa. Do mocinho-vilão ao coadjuvante chato e de autoestima excessivamente elevada, cada um foge do genérico e deixa a história mais cativante. Grande parte disso se deve à dupla Ballister e Nimona, mas a metamorfa irônica e adversa à normalidade mostra em todos os momentos por que é a estrela do projeto.
É curioso, no entanto, que o ponto mais duvidoso do filme esteja justamente em sua protagonista.

Primeiramente, é preciso reparar que, acima, usamos o termo “ponto duvidoso” no lugar de “problema”. Nimona é, sem dúvida, o grande destaque entre os personagens e apresenta várias nuances ao decorrer dos acontecimentos propostos no enredo. Para aqueles que assistem ao filme sem os antecedentes da HQ, a personalidade da menina se sustenta e conquista o coração.
No entanto, se comparada aos quadrinhos, a faceta heroica e sensível da metamorfa acaba distorcendo sua essência original. No filme, Nimona perde parte seus ideais amargos para dar espaço à fragilidade – o que não é algo negativo. A questão aqui é qual versão da menina o espectador prefere, levando em consideração o conhecimento que se tem sobre a história original ou não.
Olhando especificamente para o longa, a nova personalidade de Nimona encaixa bem na narrativa proposta, já que permite ao espectador conhecer os traumas da menina mais a fundo. O roteiro, claro, também se beneficia, pois ganha formas mais abrangentes de usar sentimentos – tanto do público quanto dos protagonistas.
Em relação aos detalhes técnicos, o estilo de animação de Nimona é bastante consistente e agradável, causando forte impacto no clímax da história. Porém, a arte não está livre de escorregões. Raras composições de ambiente destoam do todo devido à sua planicidade visual, ou seja, montagens que não têm o volume necessário para parecerem harmônicas. A estranheza instantânea existe, mas os quadros não se mantém em tela por tempo o suficiente para serem um incômodo.
Nimona é um filme obrigatório para quem gosta de animações em que é completamente aceitável torcer para o vilão. O humor irônico da narrativa funciona muito bem – até quando é propositalmente ruim – e os personagens brilham em sua originalidade. Do outro lado da moeda, momentos de emoção apertam o peito por sua intensa sensibilidade.
Depois de anos de perrengues, entrando e saindo da gaveta, Nimona triunfa ao se tornar um filme chamativo, divertido e com a dose certa de “assuntos sérios”. Para quem quiser uma experiência ainda mais rica, recomendamos ler a HQ original antes de ver longa, pois essa produção é um caso raro em que a adaptação cinematográfica complementa pontos dos quadrinhos, mesmo que as histórias sejam diferentes, e oferece detalhes que ficariam ainda mais belos nas páginas desenhadas.
Nimona esta disponível no catálogo da Netflix.