A estreia de Cavaleiro da Lua cumpriu todos os requisitos de um bom primeiro episódio. Apresentou o protagonista, seus dramas, antagonistas e deixou ganchos interessantes o suficiente para o público voltar na semana seguinte.
Usando a velha cartada do narrador não confiável, a série chamou a atenção por não responder seus mistérios com piadas imediatas, como costuma acontecer nos filmes do Universo Cinematográfico da Marvel. É só no segundo episódio, lançado no Disney+ nesta quarta-feira (6), que Steven Grant (Oscar Isaac) e o público começam a ter respostas – que chegam acompanhadas por surpresas e um deus abusivo.
[A partir daqui, spoilers do segundo episódio de Cavaleiro da Lua]
Logo após os insanos eventos da noite anterior – em que cedeu o controle de seu corpo a uma figura mística para trocar porrada com um chacal –, Steven acorda amarrado na cama. As medidas para se assegurar de que não deixou o quarto podiam até parecer exageradas no capítulo anterior, mas agora elas parecem mais do que plausíveis.
Se antes a pancadaria sonâmbula acontecia longe de casa, agora a loucura encontra o rapaz, que se depara com o museu em que trabalha sendo interditado após a pancadaria que encerrou o primeiro episódio. Com ajuda do segurança, ele assiste à filmagem e descobre que as câmeras não conseguem ver o chacal que o atacou. A consequência recai exclusivamente sobre ele, que acaba demitido.
Além de incriminar Steven – e colocar a veracidade dos eventos em cheque perante o público –, esse momento marca a primeira vez em que a personalidade Marc Spector aparece no controle. Ainda que rapidamente, é possível confirmar que a persona frágil e dócil de Steven servirá de contraste com um Marc durão, seguro e até raivoso.
Junto com a demissão, o RH do museu o encaminha a um hospital psiquiátrico. Mesmo que a instituição faça parte de uma das mais elogiadas HQs do personagem, ir até ela levanta questões a respeito da lógica por trás do protagonista. Ele descobriu no episódio de estreia que o Museu está cheio de seguidores do vilão Arthur Harrow (Ethan Hawke), então parece um tanto absurdo seguir o conselho da empresa e visitar uma instituição capaz de mexer com sua mente.
Seu verdadeiro confidente continua sendo a estátua viva que atua nas ruas de Londres. Após uma conversa unilateral com o homem, ele decide seguir a pista da chave que descobriu escondida em seu apartamento para provar que não está maluco. Em busca de respostas, ele chega a um depósito de containers que parece abrigar Marc Spector, sua outra personalidade.
No local, ele encontra armas, dinheiro, passaportes, o Besouro mágico do primeiro episódio e a chance de ter uma conversa mais longa com sua outra personalidade, que finalmente começa a explicar o que está acontecendo.
O momento de revelação volta a utilizar espelhos para ajudar o espectador a entender quem está falando, recurso que exige capricho técnico e carrega anos de história no cinema. Isso porque colocar um personagem contra a própria imagem é um recurso utilizado há anos para traduzir visualmente as mais diferentes sensações, que vão desde solidão a aprisionamento, até não reconhecer a si mesmo. Não à toa, Steven experimenta tudo isso ao mesmo tempo, quase sempre com os próprios olhos o encarando de volta.
É assim que ele descobre que sua outra personalidade, Marc, serve ao deus egípcio da Lua chamado Khonshu, protegendo os vulneráveis e entregando “vingança” aos malfeitores. Pouco convencido disso, Steven reúne os pertences da bolsa para se entregar à justiça com medo de voltar a machucar pessoas. Essa ideia atrai o próprio Khonshu, que o persegue em outra cena fortemente inspirada pelo cinema de terror.
Ele é salvo no último momento por Layla (May Calamawy), a jovem que atendeu ao telefone no primeiro episódio. Na fuga, ela enche Steven de perguntas e ajuda a montar o quebra-cabeças sobre quem é sua outra identidade. Ela questiona se ele foi sequestrado novamente, lembra que ele tem um traje especial e revela que os dois são casados.
Steven até tenta explicar o que está acontecendo, mas é pego no turbilhão de dúvidas e indignação da jovem. Layla explica que viveu uma vida de aventuras ao lado de Marc, mas lembra que estão se divorciando e questiona se ele fugiu para achar o Escaravelho sozinho. O fato de ela conhecer a cultura egípcia e ser fã da mesma poetisa fazem com que Steven lamente um divórcio do qual nem se lembra.
A discussão é interrompida quando os suspeitos investigadores Fitzgerald e Kennedy aparecem atrás de Layla, ou do tal Escaravelho. Com o passaporte falso e os antecedentes do protagonista, eles o levam para a justiça. Durante o caminho, a dupla revela que Marc é procurado internacionalmente após atacar uma escavação no Egito e executar os arqueólogos responsáveis.
Vale notar que essa história de fundo é uma recriação da origem de Marc Spector nas HQs e deixa no ar a possibilidade de que um desses arqueólogos seja ligado a Layla já que, nos quadrinhos, ele faz parte do bando que assassina o pai da personagem que viria a se tornar seu interesse amoroso.
Como era de se esperar, a dupla não é policial coisa nenhuma e leva Steven direto para uma comunidade liderada por Arthur Harrow. Temendo pela vida dos dois, Marc pede o controle do corpo e não recebe, já que Steven não quer ser um assassino. Tentando convencer o jovem confuso a entregar o Escaravelho, o vilão explica que o julgamento de Ammit não funcionou no último episódio pois há muitas mentes no controle do mesmo corpo.
A participação de Harrow também contribui com o objetivo de revelar mais sobre o que está acontecendo ao redor de Steven. Se gabando de não ter medo de Khonshu, o vilão explica que já foi um avatar do deus, mas que divergências o levaram a se afastar. Ele acredita que a justiça de Khonshu vem muito tarde, apenas quando as pessoas já sofreram. Já a de Ammit tem o poder de prevenir o sofrimento, julgando os malfeitores antes mesmo de se tornarem malignos.
Os dois voltam a travar um debate filosófico, em mais uma ótima interação entre Ethan Hawke e Oscar Isaac. É curioso como a discussão sobre fatalismo – a crença de que todos os acontecimentos já estão traçados e não podem ser modificados – e livre-arbítrio volta a aparecer em uma série da Marvel após Loki. Porém, se o Deus da Trapaça advogava em causa própria esperneando para ser livre, aqui o debate percorre caminhos sobre a legitimidade de se tirar vidas sob a desculpa de estar fazendo o bem.
É nesse debate que o vilão explica que quer trazer a deusa Ammit de volta para facilitar os julgamentos. De quebra, ele ainda acusa Khonshu de ser um mentiroso que sempre exige “uma última coisa” de seus avatares sem nunca cumprir o combinado e liberar seus avatares.
Quando as coisas começam a esquentar, Layla aparece novamente para resgatar Steven. Em posse do Escaravelho, ela volta a pedir para que o rapaz invoque o traje de Cavaleiro da Lua enquanto eles fogem de Harrow e seus homens. Além dos capangas, a dupla precisa correr de um chacal, cuja presença também serve para esclarecer que essas criaturas são reais, mesmo que câmeras e outras pessoas não possam vê-las.
Após ser jogado prédio abaixo pelo monstro, Steven pousa vestindo um traje. Descobrindo quase por acidente que também é uma espécie de avatar de Khonshu, ele surge vestindo um uniforme especial cheio de apetrechos. Fãs das HQs vão reconhecer que esse visual é do álter-ego Sr. da Lua, mesmo que sua personalidade e função sejam totalmente diferentes na série.
Aqui ele surge como uma forma de diferenciar a forma superpoderosa de quem está no controle do corpo. Se o brutal Marc invoca um vigilante com visual parecendo o de uma múmia, o britânico Steven vira um vigilante de trajes finos e bastões brilhantes. O momento de descoberta é interrompido pelo chacal, que volta a atacar em mais uma luta com efeitos visuais abaixo do padrão Marvel.
Mesmo que a versão poderosa de Steven tenha seus truques, ela ainda não é páreo para a criatura sobrenatural. Com medo que outras pessoas se machuquem, ele dá o controle a Marc, que retoma o visual clássico do herói em uma perseguição estilosa. Nesse ponto, os telhados de Londres trazem uma aura gótica mais apropriada para essa história do que os prédios de Nova York que aparecem em boa parte das produções do MCU.
Mesmo com problemas na computação gráfica, a perseguição empolga, especialmente por seu desfecho brutal para os padrões do MCU. No fim da luta, vemos os papéis se invertendo, com Marc no comando e Steven no reflexo. A personalidade dócil e até então dominante até comenta que é “horrível” não estar no controle e até tenta pegar o corpo de volta em vão.
Sem o esquisito sotaque britânico e com uma confiança nunca antes vista, Oscar Isaac dá vida a Marc com toda a pose de um herói típico. No comando, o mercenário explica que serve a Khonshu para pagar uma dívida de sangue e que só está com o deus até quitar o débito. O problema é que ele não consegue se livrar porque a divindade egípcia ameaça tomar Layla como sua avatar caso Marc desista, provando que Harrow tem sua cota de razão.
Por falar no deus, ele chega a Marc cheio de exigências e petulância, dizendo que Steven não deveria interferir. Esse é só o começo de um diálogo que coloca na boca de Khonshu um discurso tipicamente abusivo, daqueles que joga a culpa dos problemas de relacionamento no parceiro.
É uma fala que vai e volta em termos de agressividade. Em um momento, chama o outro de “ingrato” e até o chantageia com a possibilidade de tomar Layla. No outro tenta pregar a reconciliação, dizendo que eles precisam um do outro, chegando a dizer que Marc precisa ser protegido – desde que o humano faça o que ele quer.
O episódio chega ao fim com o personagem de Isaac acordando desorientado no Egito, uma espécie de volta ao início que promete revelar ainda mais sobre o passado do protagonista. Por outro lado, a caçada ao vilão promete se intensificar, já que Arthur Harrow agora é portador do Escaravelho, que pode revelar a localização da deusa Ammit. Resta saber como Steven/Marc vai agir quando tem contra si não apenas um inimigo, mas também, em certa medida, o deus que devia lhe proteger.
Cavaleiro da Lua ganha novos episódios às quartas-feiras no Disney+.
